A CARTA
Depois de algum tempo, entre longos beijos, abraços, troca de intimidades e muito carinho, fruto de um relacionamento amoroso que eu julgava duradouro, pensando que amava aquela mulher tão meiga, carinhosa e especial, na certeza absoluta de que era correspondido, resolvi que era o momento para propor-lhe matrimônio.
Numa noite, displicentemente sem alarde, tirei as medidas dos seus dedos e do seu corpo para mandar confeccionar as alianças e um belo vestido.
A vista da minha situação financeira estabilizada, com emprego e salário digno imediatamente comprei um apartamento bem localizado próximo a uma estação do metrô. Ato contínuo contratei um decorador profissional que o decorou com gosto e zelo.
Naquele dia chamei um florista e comprei vários tipos de flores espalhando-as por toda parte da casa, dando um colorido especial com um vaso no centro da mesa da sala de jantar.
Combinei com a minha amada que iríamos nos encontrar naquela noite e que eu lhe teria uma bela surpresa, no que ela aceitou o convite e que também tinha uma surpresa para mim.
Religiosamente ambos estávamos no horário no local e horário aprazado. A convidei para entrar no carro e rumamos para o nosso novo lar, onde logo estaria chegando o jantar que antecipadamente encomendara. Até ali tudo perfeito.
Quando chegamos apanhei as chaves do apartamento e a entreguei para que ela mesma o abrisse. E com ar de vitória falei interrogando:
- Aqui será a nossa casa. Gostou da surpresa? Este apartamento comprei para nós vivermos o nosso amor. Espero que a decoração esteja do seu agrado.
- Ah! Veja as alianças e o vestido que lhe comprei. Tomara que eu tenha acertado nas escolhas.
- Enfim meu amor quer casar-se comigo? Perdoa-me por não ter dito nada antes, pois pensei que essa surpresa cairia bem.
Diante do avalanche de indagações que lhe veio à mente naquele instante; diante de um quadro que se não fosse tão drástico e patético seria cômico face à sua surpresa quando pusesse a falar, ela manteve-se de boca aberta, num estado de paralisação total. Pensou e mentalmente falou para si: - O que fazer? Como sair daquele emaranhado? Como justificar o que pretendia fazer naquela noite? Porque um homem de bem a amava tanto? Como falar do seu passado?
Foi interrompida porque eu a avisei que o jantar já estava esfriando.
Para minha surpresa a minha amada não falou mais uma única palavra. Após o jantar sentou-se no sofá e pôs-se a chorar. Somente quando se preparava para deitar balbuciou: - Eu não mereço um homem com tanta pureza e dignidade. Olhou-se com lágrimas nos olhos de disse tremendo:
- Acho que só pela manhã terei condições de dar a resposta, No momento estou totalmente confusa. Você pode me esperar?
Respondi um pouco decepcionado:
- Eu gostaria que fosse agora, mas como você me pede para e esperar e vai dormir aqui do meu lado eu espero.
Não consegui dormir um único minuto. Levantei-me e fui assistir filmes; li alguns livros, deitei e levantei e quando o sol já estava alto dei um cochilo de uns quinze minutos, Tempo suficiente para não mais vê-la em parte alguma.
Daquele dia em diante a minha vida modificou-se radicalmente. Deixei de lado o bom senso e passei a freqüentar bares, boites e antros de perversões de todas as naturezas. Nada mais me interessava. As orgias e as mulheres de vida fácil me agradavam muito. Sem perceber fui afundando cada vez mais. A única coisa boa e útil que eu fazia era manter-me no emprego e morando no frio e sombrio apartamento que jamais serviu para um ninho de amor.
Certo dia, num sábado pela manhã, quando fiquei até mais tarde na cama levantei ao som da campainha anunciando visita. Era o carteiro com uma carta registrada me endereçada, porém sem remetente. Abri aquelas dez páginas manuscritas que ora resumindo diziam:
“Perdoa-me por todo mal que eu possa lhe ter feito. Não consegui naquela noite e nem pela manhã explicar a minha triste sina. Chorei muito porque queria aceitar o seu convite; queria lhe beijar e lhe abraçar, transar e viver. Acho que toda e qualquer mulher do mundo se sentiria uma deusa por uma proposta tão nobre. E foi assim que fiquei. Ainda tentei conciliar as idéias para responder que aceitava a sua proposta. Porém pela manhã cheguei à conclusão que poderia ser muito pior pra mim e pra você. Briguei comigo mesma e me agredi por tantos erros do passado. Sai daquele prédio ao amanhecer e perambulei horas e horas pela redondeza na esperança de encontrar uma solução e resposta para a minha vida, porém sem lograr êxito. Tomei uma condução para um terminal de ônibus qualquer e de lá fui até a rodoviária do Tietê. Juntei todas as economias que ainda me restavam e comprei uma passagem para Manaus. De lá consegui uma carona numa barcaça e fui parar num vilarejo à beira do rio Amazonas, como se fugindo resolvesse os problemas. Os dias e os meses passaram depressa. Cansada e angustiada, com saudade de tudo e de todos voltei para a civilização onde arranjei até com facilidade um emprego de doméstica. Como não saía pra nenhum lugar, não comprava roupas e nem calçados caros, fiz umas economias. Guardei um bom dinheiro com o qual voltei para São Paulo. Agora posso explicar o que aconteceu: Eu fui casada com um cidadão bruto e violento que me maltratava todos os dias, a mim e as minhas duas filhinhas que eu amava muito. Um dia ele saiu com as duas crianças dizendo que iria passear. Mas foi para a casa de uns amigos onde bebeu demais, ficou bêbado e quando voltava pra casa capotou o carro, matando-as. Foi preso, mas pagou fiança e logo saiu. Então me separei somente de fato, pois no documento ainda continuava casada. Inconformado com a separação passou a me seguir e a me ameaçar dizendo que já havia matado as nossas filhas e eu morta também não iria fazer falta nenhuma. E tem Mais uma coisa: Que ele iria revelar pra todo mundo em todo lugar onde eu estivesse o meu passado negro como prostituta na Rua Aurora em São Paulo de onde ele me tirou. Infelizmente isso era uma verdade que eu jamais poderia negar. Por isso mudei-me de um bairro para outro, até o dia que lhe encontrei. Apaixonei-me de verdade. Fiquei muito mais tempo até que naquele dia resolvi lhe contar toda a verdade sobre a minha vida e inclusive preveni-lo de um eventual ataque do meu ex-marido. Estava tensa e muito nervosa só em pensar como você iria reagir com as minhas declarações. Quanto então me fizesses a proposta de casamento minhas pernas bambearam e fiquei sem saber o que dizer. Enfim, pela manhã saí do apartamento sem nenhum rumo. Nesses anos que se passaram apenas rezei por mim e por você. Agora, que por um golpe do destino e da sorte vi estampado em letras garrafais e uma foto de um quarto de página, num jornal, que o meu ex-marido morreu, assassinado por um marido traído pensei que seria o momento de narrar esse meu destino cruel. Se um dia puder pelo menos me perdoar, por favor, liga-me neste número dizendo que leu a carta. “Mas se achares que não mereço essa atenção, assim mesmo peço e rogo a Deus para protegê-lo hoje e sempre”.
Sentado no sofá da sala, com aquela carta de folhas soltas nas mãos trêmulas de emoção e também por conta de tanto álcool que eu ingeria quase que diariamente, refletia sobre o bagaço em que me transformei sem em nenhum momento ter pensado no sofrimento daquela mulher maravilhosa que abdicou de tudo inclusive do seu bem estar para não me prejudicar. E que ainda tinha a humildade de me pedir perdão. Lembrei-me de que se tivesse conversado mais sobre as nossas vidas e lhe tivesse demonstrado de outra forma, sem ostentação, os meus projetos e proposta de casamento, certamente ela teria explicado antes. Assim nada teria acontecido. Enfim, eu quis surpreender e mostrar o meu poder, a minha autonomia e ambos fomos surpreendidos pelas peripécias do destino.
Claro, como não poderia deixar de ser eu reli a carta mais umas cinco vezes e acabei telefonando. Afinal, não somos de ferro. Casaremos em breve.